Valdemir Paes Landin escreve crônica sobre um casamento celebrado em Rondonópolis, nos idos de 1958

O primeiro repicar do sino, tangido pelo octogenário Frei Enigna – em sua batina marrom, ornada pelo Cordão-de-São-Francisco, era o convite aos fiéis para a Santa Missa, extraordinária, à ser celebrada, naquela manhã de sábado pelo carismático Frei Servácio.

O Sol já esparramava seus raios luminosos pelo largo que se estendia à frente da pequena Igreja do Sagrado Coração de Jesus. As mais persistentes “fiéis” àquelas celebrações, já estavam à postos. Madrugadeiras, as vacas do “Melado” – Firmício Barreto, após a pastagem na praça, se posicionavam deitadas a ruminar, à frente do templo, como se  esperassem as bênçãos do celebrante.

No tanger do segundo sinal, Dª Vicentina, Donana “Boleira” e Dª Maria de “Dotô Preto”, as mais fervorosas beatas do Sagrado Coração, adentravam os portais da nave, cumprindo suas obrigações para com a Santa Madre  Igreja; a seguir, em seus hábitos azuis-celeste, entoando cânticos de louvor à Virgem, chegavam as freiras. Na igreja lotada, a fumaça vertida pelo turíbulo em brasa, incensava as cabeças dos fiéis que, genuflexos, imploravam perdão para os seus pecados.

Antes do terceiro sinal, chegaram na carroceria da camionete do DNER, dirigida pelo diretor local do órgão, o engenheiro paraguaio, Miguel Angel Ortiz – que almejava a vida monástica, e adotaria o nome de Padre Miguel, vários funcionários do departamento e também, craques do Rodoviário Futebol Clube.

A voz de barítono do pastor, inundou em latim, os quatro cantos da Praça Brasil:

–              “Dóminus vobíscum.”

–              “Et cum spíritu tuo”. Responderam os coroinhas, seguidos pelo  coral das freiras.

Advertida na homilia, dos males do pecado, que destrói o corpo e flagela a alma, no fogo do Inferno, a cidade, em abençoada angelitude, marchou em busca de seus interesses imediatos.

A Praça era um centro administrativo  da fé, da política, da coerção e, porque não dizer também, da diversão? Lá estavam: a Câmara de Vereadores com seus cinco membros, que compunham o Poder Legislativo do Município; a Prefeitura Municipal; a Cadeia Pública, anexa à  Delegacia de Polícia.

Duas traves fincadas no espaço que separa a rua Fernando Corrêa da Costa da rua João Pessoa, denunciavam a existência do Campo de Futebol, sempre lotado de torcedores, aos domingos, para vibrarem pelos times de suas preferências, dentre eles, Atlético, Valinho e Rodoviário. Fora os prédios públicos, e o templo religioso, uma dezena de casas compunham o conjunto arquitetônico, em volta da Praça. Lá estavam: as ruínas da serraria do Deodato – que beneficiou o madeiramento do casario existente, a maioria, sob a enxó e o martelo do carpinteiro Francisco Carnaiba; A desativada oficina mecânica do finado Avelino; a tipografia do instrutor cívico das escolas, Pedro Ferrer; a casa do empreendedor português, Adolfo Augusto de Morais, – que planejava lotear suas terras, banhadas pelos rios Vermelho e Arareau,  com a denominação de “Vila Aurora”; A casa do Inspetor Escolar Benjamin Guimarães; O Hotel Central do volumoso José Amâncio Dias – o “Bagunça”;  A Pensão Bahia, de José Pereira Baia, e o Hotel Rio Branco, do vereador Anísio Braga.

Se a solitária praça, ainda envolta em santificação, absorvia as energias do culto celestial daquela manhã, era em outra parte da cidade, que ecoavam os explosivos gritos dos interesses mundanos.

Sob a copa de um frondoso pé de manga, na avenida General Rondon, no local onde nascia a rua Dez de Dezembro, uma dezena de vendedores mercadejavam, na “Feira da Mangueira”. Complementava o movimento da feira livre, nos arredores, as casas comerciais: “A Vencedora” – comércio varejista de secos e molhados; a movimentada “Casa Araújo” –  com sua variedade de tecidos, malas chapéus e perfumes, e que, através do riso amistoso de seus proprietários, cativava os fregueses da roça, que também buscavam os “prefumi Tabu e Roiá Briá”, que iriam exalar nos corpos das donzelas, nos bailes das festas sertanejas; O  “Bar do Roxinho”,  local onde um caminhão Chevrolet, algumas carroças e montarias diversas, despejavam levas de matutos, vindos das glebas, para a negociação de seus produtos.

O alvoroço era geral, em volta da feira. No amanhecer do dia, já se ouvia o guinchar de um porco, sacrificado à faca, na porta da casa do Maroto. Mascates de cortes de tecidos; Vendedores de aves, suínos, ovos e frutos, anunciavam em alto e bom som suas mercadorias. Mas ninguém superava o velho baiano, seu Felipe, na arte de propalar seus produtos:

“Olha a mandioquinha! tem da grossa e da fininha! da branca e da amarelinha! O marido descasca, e a patroa cozinha!”

Um novo serviço de alto falantes, com suas poderosas cornetas, inundava o ambiente com os sucessos sertanejos de “Silveira e Barrinha”, “Tonico e Tinoco”, “Alvarenga e Ranchinho” ….

O comércio ilegal corria frouxo. De munição e  armas de fogo, até a venda do legítimo perfume francês, que a ignorância do povo apelidara de “perfume paraguaio” – de vez que o produto passava pela República Guarany, nas asas do contrabando, antes de aqui chegar.

Maria Sete-Voltas, sem dar conta de sua fealdade, denunciava em voz alta, seus imaginários casos amorosos com figurões da cidade. Até a simulação de invocação de espíritos havia na feira. Um negrinho simpático, de seus dez anos, arrancava a admiração das pessoas – após receber alguns trocados, fechava os olhos, e proferia  um mantra:

“Meu são Miguel, santo benzedor, cura febre, doença e calor!“

A tagarelice das lavadeiras, equilibrando nas cabeças, suas trouxas de roupas, iam em direção ao rio Arareau. Admiradas, comentavam os espetáculos do Circo do “Meloso”, com seu palhaço engraçado, e os dramalhões que induziam às lágrimas, a sensibilidade feminina. As confidências das comadres eram ditas, a meia-voz, num canto qualquer, sem escapar no entanto, de algum ouvido de curioso. Siá Maria Fateira, em conversa com uma comadre, lamentava os “aperreios”, que lhe traziam o velho marido.

–              Tô muito sufrida cum Jão, cumadi; Jão, quando novo, vivia dia e noite no cabaré.  Agora, que tá véio e imprestávi, só me dá trabaio!  dou banho ni Jão, lavo o saco di Jão, lavo o  tubi di Jão,  e, assim mesmo, Jão  ainda guarda roncôio de mim!

No meio daquele barulho, ouve-se cantigas de folia de reis. Era “Lau Doido” saindo da casa de Zé Barriga, com sua “Bandeira do Divino”, seguido de sanfoneiro, violeiro e batedor de bombo, entoava cânticos religiosos, misturados a modinhas de vaquejada e de samba-de-roda do sertão baiano; Irreverente, reclamava de quem pregava notas de pequeno valor na bandeira:

– “Fio duma égua, prega uma misera de nota na bandera, e depois qué sê protigido du santo. Prus inferno com sua suvinice, miseravi!”!

Na esquina da rua Treze de Maio, existia a chácara de Josias Gomes. Além do grande pomar, a vivenda era dotada de uma imenso casarão, em estilo colonial, e teria sido um entreposto de distribuição de utensílios, roupas e ferramentas, enviados por Rondon aos índios bororos.

Lá pelas dez horas, a avenida foi tomada pelo desfile das charretes, conduzindo as “mariposas” – mulheres da z.b.m., que, em suas roupas multicoloridas, e adornadas de colares e outros adereços extravagantes, percorriam as lojas da avenida para as compras. A charrete, por ser a condução exclusiva das meretrizes, era apelidada pela hipocrisia do falso puritanismo reinante à época, de “balaio de p…” – uma alusão grosseira às desventuradas mulheres, que optaram pelo fascínio da mais antiga profissão do mundo.

Por volta das duas horas da tarde, sob calor escaldante, e com a cidade livre do alvoroço dos negócios, ouve-se a microfonia de um aparelho sonoro, querendo entrar no ar. “Alô.. Alô! Alô!….Atenção!” Era o locutor  Francisco Bispo Rocha – “Chico Bispo”, com seu serviço de alto-falante, “A Voz Amplificada de Rondonópolis”. Após o suspense gerado pelo fundo musical de uma estrofe da marcha do “Quarto Centenário”, o locutor anunciou: “Amigos ouvintes, acaba de chegar da capital do Estado, o vereador Francisco Bispo Rocha – este locutor que vos fala, acompanhado do vereador  Odilon de Brito. Visitem-nos!”

O alto-falante, à época, era um veículo de grande utilidade, pois, além de proporcionar o entretenimento da música, funcionava como um porta-voz das notícias e avisos oficiais; comunicações de festejos; notas de falecimentos…

Nas imediações da Feira, na avenida, havia a Casa Jerusalém, dos irmãos palestinos Badie e Nabi Daud. Pelas três horas da tarde.  ao som de “La Barca”,  (Roberto Cantoral), executada pelo “Jazz Band”, conjunto musical, composto pelo maestro Marinho Franco – no saxofone; Sinhozinho – no trombone; Um desconhecido, no banjo, e Chico do Cristo, na percussão,  algumas pessoas se aglomeraram em frente ao estabelecimento dos “batrícios”.

Em seguida, um cortejo nupcial se formou, tendo à frente os  noivos.  Badi Daud, de terno escuro, tez morena, cabelos e bigodes pretos, evidenciando sua origem árabe, de braços dados com a noiva, a jovem brasileira Maria Alveni, de pele muito clara e cabelos aloirados, com sua beleza emoldurada  na veste nupcial.

 

Badie Daud Ussein Beduan, era um homem calado, permanentemente envolvido no  sentimento nacionalista; Amargava a revolta de haver perdido a terra natal, “invadida pelos Judeus, em 1948, com a aquiescência da Organização das Nações Unidas – ONU, aliada à incapacidade da Liga Árabe, de repelir os invasores”. Embora saudoso das paisagens de sua Palestina querida, seguia a vida, esperançoso das oportunidades que lhe oferecia a nova terra. Aqui resolvera ficar, e constituir família.

O casal, seguido das testemunhas e convidados, ao som de “carinhoso” (Pixinguinha), deram os primeiros passos na avenida, em direção ao casamento civil.

Ao percorrer a poeirenta avenida General Rondon, o cortejo desfilaria por uma passarela cosmopolita que, incluindo o domicílio do noivo, era habitada por muitas pessoas de outras nacionalidades, que optaram pela virtuosa “Terra de Rondon”.

A gurizada sentada na calçada da Loja de Maria Mandioca, ao lado do Bar do Roxinho, já estava afiando as canelas para seguir o casamento,  porém, foram advertidos pela dona da loja: “voltem aqui amanhã, para eu lhes tomar a lição!”. A comerciante, alimentava entusiasmo pela instrução escolar. Fazia questão de sabatinar a criançada dos arredores, que, à porta de seu estabelecimento, era submetida a uma série de perguntas sobre o desempenho na escola. Maria, fervorosa seguidora da ideologia socialista,  acreditava que, somente a educação livraria o Brasil da tutela imposta pelo “imperialismo americano”.

Ao passar em frente a Sapataria Sergipana, o maestro mudou o tom, para acompanhar as melodiosas vozes dos irmãos Miltinho e Miguelzinho que, entre uma  martelada e outra na sola, entoavam canções boêmias, do repertório musical da época.

Um operário, que trabalhava na sapataria e selaria de Domingos Paes Landim, o escolarizado índio bororo Caetano, afastou-se das atividades, para se posicionar à porta do estabelecimento. Era um aficionado pela música, dominava vários instrumentos musicais, arte que aprendera nos colégios internos dos padres salesianos, nas aldeias do Meruri e do Sangradouro.

As calçadas já estavam lotadas de gente. Desde a “Pensão do Povo” – agora sob a direção dos Klimachewski –  descente de eslavos, que chegara recentemente à cidade. Cruzando a rua Treze de Maio, após a loja de João Domingues do Amaral, um casal de noivos, encomendava os móveis para o novo lar, na primeira casa de móveis da cidade – de Arnaldo Eremita. Zé Serrador e “Pancoso”, os mais robustos chapas da região, transportavam pesadas sacas de arroz da Cerealista de Sotero Silva para ser beneficiado na máquina  do português Manuel Carrasqueira, vizinha à  “Casa do Pote”, de Alózio de Oliveira – Alózio Mandioca.

Multidões ocuparam as calçadas para apreciar o cortejo. Animado com tanta assistência, o maestro optou por algo mais apimentado, e que dominava as paradas de sucesso das rádios, pelo mundo afora. Inundou  a avenida com a balada:  “Oh! Carol” (Neil Sedaka).

 

Com a aproximação do cortejo, seu Alózio – que, sentado na calçada, fazia a leitura para seus fiéis ouvintes, – crianças dos arredores, e alguns índios bororos, das últimas novidades dos poetas nordestinos, em seus folhetins de cordel, – “A chegada de Lampião no Inferno” – “O Cachorro dos Mortos”, “O Papagaio Misterioso” ….. Levantou-se, apontou o indicador para os lábios, pedindo silêncio aos discípulos, até a passagem do casamento.

Alózio, a exemplo da irmã, Maria Mandioca, era um entusiasta da cultura. Com suas estórias de cordel, despertava nas crianças, o gosto pela leitura. Por outro lado, seu tino comercial, o fez pioneiro do intercâmbio comercial e industrial entre a região e a capital do Estado. Dentre outros produtos, trazia de Cuiabá, artefatos de cerâmica, como potes de barro moringas, bem como cal virgem, todos queimados nos fornos da florescente indústria de transformação do distrito de Nossa Senhora da Guia, na Baixada  Cuiabana.

O dentista japonês, Massao Yshizuka, de boticão à mão, saiu de seu gabinete, na esquina da rua Arnaldo Estevam, e no seu estilo nipônico, fez com mesura, uma saudação  aos noivos, e voltou à trabalhar.

Cruzando a rua após  casa de Lauro Mendes – onde a esposa, a musicista Aidê,  vez por outra, brindava a vizinhança com a boa música, tirada dos acordes de seu bandolin.  Na casa comercial de Eutímio de Matos, diante das novidades em artigos de cama mesa e banho, algumas pessoas, escolhiam os presentes para o próximo casamento.

Passada a animação, o cortejo foi acompanhado da romântica “Fascinação” (Maurice de Féraudy e Dante Pilade Marchetti). Naquele espaço, estava a loja de Rosalvo Farias, o Juiz de Paz, que virou prefeito e, assessorado pelo contador e advogado prático, Alberto Saddi, deu forma à instituição do Município. À porta da Farmácia Nova, do hilariante  João Freire – em frente ao estabelecimento de Nego Açougueiro, Dona Massi, a mais ativa parteira da cidade, discutia com o farmacêutico, a compra de remédios para suas parturientes. Na papelaria do israelita Manoel Gazali  – ao lado da Pensão do paraguaio Cristóvão Colombo, alguns alunos compravam materiais escolares.

Cruzando a rua Fernando Corrêa, na esquina, na calçada da Loja de Otacílio Fontoura, existia uma antiga bomba de gasolina, de alavanca manual, que servia aos poucos veículos da cidade. No momento da passagem do cortejo, o proprietário abastecia a chimbica (Ford Bigode),  do vereador Ludovico Vieira de Camargo –  único taxista da cidade. Esperando  sua vez de abastecer, estava o chofer, seu Artur, na boleia do Chevrolet 1953 – o único caminhão da Prefeitura.

Do outro lado da avenida, existia o casarão dos ingleses, a Missão Cristã New Testamentary – evangélicos vindos do País de Gales – Reino Unido, todos sob a orientação do Reverendo John Reys. A casa, antiga e grande, era arejada por imenso pomar, não apresentava estilo definido. As frutas atraía para os fundos da chácara, a gurizada, através das trilhas na margem do rio Arareu, para surrupiar as atraentes frutas do quintal. Usava, a molecada, do artifício de envolver Peter, o garoto da casa, com conversa-fiada, para se aproximarem da vivenda. Porém, ao ouvirem a voz da mãe do menino que preocupada, vinha à sua procura, desabavam na carreira para a beira do rio, tentando, na corrida, arremedar o sotaque da diligente mãe, que buscava o filho: “Pi ter … Pi ter…. Pii ter… Piiii teer!….”

 

Vizinha da Missão, estava a chácara do chefe dos Correios na cidade, o telegrafista Jacinto Xavier, patriarca de numerosa família. Seu Jacinto era o mais afeiçoado amigo dos bororos na região. Dialogava fluentemente na língua dos índios. Os bororos lhe devotavam quase que a mesma estima que tinham por Rondon. Vez por outra, evitavam recorrer à rigorosa e disciplinar atuação do representante do Serviço de Proteção aos Índios – S.P.I., na região, João Fonseca, para buscarem os conselhos do amigo Jacinto Xavier.

Em frente àquelas quintas, e ao lado de Otacílio Fontoura, estava o “Bar do Dário”. Espaço destinado à diversão, nos animados bailes da “sociedade”: carnaval, festejo de final de ano, festa junina… Ali, sob a batuta do “Jazz Band”, a música embalava os corações apaixonados. Como uma extensão do salão de festas, ao lado, estava a Farmácia Santa Terezinha, onde Candinho e sua animada turma de jovens festeiros, programavam as músicas e os eventos futuros.

A marcha nupcial prosseguia – ao som de “La novia” (Antonio Prietto). O calor humano dos acompanhantes, a harmonia da música, associada à energia amorosa, que exalava  da noiva, atuavam como um bálsamo, à esculpir um permanente sorriso na fisionomia do prometido. Seu Badie, estava feliz!

Antes da esquina da rua João Pessoa, o cortejo foi momentaneamente interrompido, por uma autoritária e nervosa galinha choca que, arrastando atrás de si, uma dúzia  de pintinhos, ia catar as migalhas de pães e biscoitos deixados por descuidados fregueses, nas calçadas das padarias de Azim e  de Anacleto. Ao lado estava a casa comercial de Zé Moreno, com seu antigo veículo utilitário, com a advertência no para-choques: “Sai galo!”

Isso, em alusão a um galináceo que o comerciante atropelara, na estrada da Vila Operária.

Ao cruzar a rua João Pessoa, na esquina, estava a “Pensão Bonfim” – ou “Pensão de Bidé”. José Arcanjo Ribeiro, que, apesar da falta de um braço, não temia a luta, e tocava com garra, seu empreendimento ao lado de sua Donana. Um incidente proveniente de acerto de diárias, ocorrido na Pensão, na ausência de Bidé, incitou uma discussão entre Donana e alguns peões, que ali se hospedaram. No calor da discussão, a dona da pensão, nervosa, arrematou:

–              Vanceis qué bebê, qué cumê, qué drumí, e nã qué pagá! Vanceis deixa di enrrolinha, qui Bidé nã tá!

Fez escola, Donana! Depois desse incidente, qualquer aglomeração de pessoas, onde ocorresse tumulto, sempre tinha algum engraçadinho bradando o refrão: “Deixa de enrrolinha, que Bidé na tá.”

Logo adiante, Zé Estefânio, no seu jeito acelerado, na calçada de seu bar, abastecia os lampiões Petromax, que iluminariam mais uma longa noite de partidas de bilhar. Com a aproximação da comitiva, os jogadores, se postaram na calçada, apoiados nos instrumentos de trabalho. Diante do cenário, a orquestra, tocou “Ronda” (Paulo Vanzolin). Estefânio concorria com as mesas de bilhar do armênio, João Palaian, nos fundos da loja de João Tampinha – ao lado do Bar “Vai-ou-Racha”, do “Maninho”.

Voltando à rua João Pessoa, do outro lado da avenida, na esquina, ao lado da  loja de tecidos do Oscarino, estava a casa do topógrafo inglês, Johnson. Curiosamente, a única a ostentar uma lareira, na tórrida Rondonópolis. A casa do inglês era uma ilha de cultura, na provinciana comunidade. Ali se discutiam os grandes acontecimentos da história, as novidades da cultura ocidental, as transformações do mundo, após as grandes guerras… Era freqüentada por notáveis, dentre eles, o francês Alfredo Marien, herói da Primeira Guerra Mundial, lecionara lógica, francês e matemática no Liceu Cuiabano; O advogado de origem franco-libanesa, Jesus Lange Adrien – o Cristo; o contador e professor, Wilson José de Barros; o contador e advogado prático, Alberto Saddi ….

Num determinado dia, um incidente marcou a rotina da casa de Johnson. O topógrafo recebeu a inesperada visita do Coronel Francisco de Paula Goulart. Destacando sua posição de homem importante, coronel Goulart, como era conhecido, sempre se apresentava de terno e gravata, levando à cabeça, um pequeno  chapéu de feltro. O coronel  era dono da Fazenda Velha, adquirida do General Rondon. Político de prestígio no interior de São Paulo, ostentava o título de fundador da progressista Presidente Prudente, no oeste paulista, e como prefeito, também, administrara aquela cidade. Em volta da prancheta, Johnson, que havia medido as terras do Coronel, dialogava com este, prestando-lhe informações técnicas sobre a medição. Não convencido, o Coronel pedia-lhe mais explicações, provocando o descontentamento de Johnson, resultando daí, uma troca de acusações entre os contendores. Porém, a discussão acelerou, virando bate-boca, quando Johnson, acusou o Coronel de “Nhô Chico”.

“Nhô Chico”, na época da escravidão , era o apelido que se dava à senhor de escravo. Irritado, com o deboche, o velho Coronel, reclamou que,”… pela sua posição de homem probo, não poderia bater boca com um desqualificado,  sem origem definida, que viera se esconder nos confins de Mato Grosso! “.  Na porta, já de  saída, virou-se para os presentes, e asseverou:

– Saibam os senhores que, quando a Princesa Regente sancionou a lei que baniu o cativeiro do Império, eu contava com a tenra idade de dez anos. Portanto, jamais poderia ter sido senhor de escravos, como me acusa – apontando o indicador  para Johnson, “este capadócio”

Seguindo o cortejo, depois da casa do Delegado Francisquinho,  estava a loja de seu Feliciano. Aquele era um lugar sossegado. O velho comerciante ficava encostado no balcão, vigiado por seu bichano de estimação, um gordo gato, que se espreguiçava à ronronar, em cima do rádio à pilhas, na prateleira – sintonizado na Rádio Inconfidência. Contam os irreverentes da época, que a loja de seu Feliciano era tão antiga, que ainda vendia sapatos Luiz X

Do outro lado da avenida, cruzando a rua Afonso Pena, na esquina, estava o Cine Meridional – desativado, e provocando a revolta da juventude de uma cidade sem cinema, sem luz elétrica e sem curso ginasial. O cinema ficava em frente  à movimentada  Pensão de Maria Tric-Tric.

Depois do cinema, chegava-se à Pensão Cuia – em frente ao antigo casarão dos Correios, administrada pelo português Joaquim Oliveira, com a esposa e os filhos. A Pensão Cuia era o ponto de parada dos ônibus e caminhões, que trafegavam nas rodovias federais. Naquela pensão, chegavam lotados de passageiros, o pequeno ônibus do Expresso Tupã, que vinha de Goiás, e uma jardineira – ônibus com carroceria, a saudosa “Baleia – balança, mas não cai!”, vinda de Campo Grande –  no antigo Sul de Mato Grosso. A Pensão Cuia era considerada a “janela para o mundo”. Por ali desfilavam indumentárias, costumes  e sons de dialetos de todo o Planeta.

Virando à direta, o cortejo alcançou a rua Poxoréo, passou em frente à casa do Juiz de Paz, José de Matos, e o casarão do português Domingos de Lima – topógrafo encarregado do traçado das ruas e avenidas da cidade. Traçado ampliado, posteriormente, pelos topógrafos Sinval Dueti Silva e José Francisco Pereira.

Já perto do local do casamento – o cartório do Escrivão Ozório Machado, na esquina da avenida Amazonas, e percebendo os músicos, a apreensão do noivo, ao sentir  aproximar-se o momento mágico, de receber nos braços, a mulher amada, a orquestra tocou “Ansiedad” (sucesso latino americano, coroado na voz do americano  Nat King Kole).

A cerimônia do casamento, teve início.

Fato curioso, ocorrera na vida daquele Escrivão. Eleito vereador do município de Poxoréo, pelo distrito de Rondonópolis, no entanto teve, Seu Ozório, a expedição de seu diploma interrompida, por um incidente gravíssimo. No  ato formal da assinatura do diploma, o Juiz de Direito, Antonio de Lima, juntamente com seu auxiliar imediato, o Escrivão Frutuoso Brandão, tiveram suas vidas ceifadas pelas balas assassinas cuspidas das armas do banditismo político, que imperava na região dos garimpos.

Confirmando a vocação pacifista dos brasileiros, entre as testemunhas do casamento, ao lado do libanez Nain Charafedine, estava o israelita Manoel Gazali.

Às 18:00 horas do dia de 11 de abril 1958,  finalizava o ato de celebração do casamento. Os noivos receberam os cumprimentos no local, ouvindo o tanger do sino da Igreja do Sagrado Coração, que convidava os fiéis para a última celebração religiosa do dia – a reza noturna. E a orquestra,  finalizou com  “Ave-Maria”, de Gounod.

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